Foram quase quatro séculos de escravidão no Brasil quando, em 1888, sem qualquer apoio aos negros, assinou-se a famosa Lei Áurea que estudamos na escola.
Negros libertos! Uhuuuuu! Mas e agora, o que fazer? As perguntas que pairavam eram “De onde vim, para onde ir?”. A liberdade estava tão somente no papel. Não houve sequer qualquer esforço por parte do Império do Brasil para promover o sentimento de igualdade e liberdade até porque não havia interesse dos donos do capital no sentido de profissionalizar os negros libertos, afinal eles eram PhD em trabalho braçal, o que na época era interessante que continuasse assim (e se analisarmos bem o cenário não é tão diferente atualmente). O período pós abolição da escravatura só evidenciou problemas que seguem até hoje e precisam ser vencidos para que haja, na prática, uma democracia racial. Alguns continuaram “libertos” nas fazendas dos seus senhores em troca de teto e comida e vários continuaram no regime de escravidão mesmo, sejamos realistas.
Aos poucos e a passos bem lentos esse cenário foi mudando, mas quando falo lento, imaginem um bicho preguiça se movendo.
Após o fim da Ditadura Militar no Brasil, começamos um processo de democratização que culminou na Constituição de 1988 e com ela houve um pequeno avanço legal na construção da igualdade racial. Como já disse acima, o processo de luta antirracista é o que? Lento! Contudo teve seu início com a Lei nº 1.390/1951, que tornou violação penal a “prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor”, resultando na determinação de que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, XLII).” Entretanto o debate público acerca do papel do Estado na questão racial não pode se limitar tão somente ao combate da discriminação e do racismo, mas cabe ao governo adotar ações positivas na promoção da igualdade racial efetiva e podemos ver essa noção, ainda que timidamente, no artigo 215, § 1º.
Nós brasileiros enchemos a boca para falar que não somos racistas, mas o nosso país foi fundado no racismo e se realmente não fôssemos racistas, exigiríamos das escolas de nossas crianças que se cumpra a Lei 10.639 que trata de uma norma de 2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação obrigando a inclusão do ensino da história africana e afro-brasileira na escola. Toda vez que converso com pais (eu não sou mãe e nem pretendo ser um dia) e pergunto se eles conhecem essa lei, geralmente ouço um “vou procurar saber”.
Acho estranhíssimo ter que existir um dia para celebrar a Consciência Negra visto que mais de 55% da população brasileira é negra (a maior número fora da África) e que esse é o tipo de sentimento que devemos cultivar diariamente. Sendo assim, convidei minha melhor amiga, Bel de Isabel, a responder umas perguntinhas e a escrever um texto sobre como ela se sente.
Manu: Por que você acha que o negro sempre foi marginalizado?
Bel: Questão histórica. Acredito que a dominação só foi possível pela difusão do pensamento de que éramos uma raça inferior. E claro, pela violência.
Manu: Para você, por que os traços físicos do negro “incomodam” tanto as pessoas e tem pouca visibilidade na mídia, apesar do cenário estar mudando gradativamente?
Bel: Igualmente histórico. O negro “surgiu” para os brancos em geral pela escravidão, e existia a necessidade de manter essa raça como inferior e diferente e isso se perpetuou até os dias de hoje. Eu me lembro de eu mesma associar a pele negra ao feio. Exatamente como o vídeo do face que mostra crianças tendo que dizer qual era a boneca mais bonita. A branca ou a preta. E a maioria escolheu a branca. E não consigo nem ter ideia de quando isso começou e nem porque. Depois de adulta que consegui achar negros bonitos.
Manu: Como acha que surgiu a relação entre negros e baixo nível de intelectualidade?
Bel: O lugar do negro no mundo “começou” pela escravidão. Falando de Brasil, e acho que posso incluir EUA, não temos registros, história, passado, identidade de antes da escravidão. Quando você aprende que seu povo “nasceu” para servir, você já cria a realidade de que o nosso lugar é aquele e não se enxerga em posição diferente. Além disso, concretamente depois da escravidão o negro sempre foi deixado à margem da sociedade. A prática racista manteve o negro nas camadas mais baixas e nesse lugar de “não inteligente”, afinal só servimos para servir, para o trabalho pesado, que ninguém quer fazer. Só já no mercado de trabalho, na faculdade que eu tive contato com negros “inteligentes” (que eu achava isso, ignorando todos os outros que eu conheci antes).
Manu: Como eram as escolas que frequentava e como os professores tratavam vocês?
Bel: Frequentei escola pública a vida toda. E escola do subúrbio do Rio de Janeiro. Não me lembro a porcentagem de negros, mas me lembro de ser uma das poucas na turma, a única no grupo de amigos. Sempre zoada pelo cabelo e recebendo aqueles xingamentos básicos quando se é preto como “macaco” e “deixa ela que é preta”. Não me lembro de episódios traumáticos com professores, mas me lembro de nunca ser a escolhida para nada, nem de ser exemplo para nada. Lembro nitidamente de um episódio no ensino médio: primeiro dia de aula, a professora fofa elogiava todas as meninas da sala, destacadamente as que tinham olhos claro, depois as outras que ela chamava de “lindas” e quando chegou a minha vez ela escolheu dizer “que negra de traços fortes” ao invés de dizer “linda” como ela disse para as outras.
Manu: Como foi o ingresso na universidade e como foi essa experiência?
Bel: No quesito racismo e noção do que é racismo nem foi a faculdade que foi um divisor de águas para mim e sim o mercado de trabalho. Comecei a trabalhar em uma fundação de escolas e tive contato com profissionais negros, com a inserção de jovens carentes de verdade, com políticas de ações afirmativas. Depois fiz pré vestibular em um curso para “negros e carentes” na época das cotas e tive mais contato ainda com militantismo (bem discreto ainda). Na faculdade eu ainda era minoria na turma (acho que principalmente por ser uma Faculdade Federal da Zona Sul, aŕea nobre do Rio de Janeiro), mas tive uma professora ultra nariz em pé e topetuda preta que me mostrou que a gente pode e deve se orgulhar do que somos e das nossas conquistas. Daí em diante foi o contato com a política, a dança de salão (estudando a história do samba, as letras, os compositores, etc) e foi só ladeira abaixo, ou melhor, para cima na conscientização.
Manu: Como foi a recepção no mercado de trabalho?
Bel: O racismo quando somos crianças é mais duro e cruel, quando crescemos ele é mais sutil. Meu primeiro trabalho, como eu disse, foi muito bom no sentido de me apresentar à diversidade. No segundo já rolou um retrocesso. Era a única negra do meu setor e uma das poucas da empresa. Nunca fui “destratada” pela minha cor, mas ouvia sempre sobre ter “roubado” o nariz de alguém e sobre ser boa de cama. Nessa época eu ainda achava que isso não era racismo. No terceiro trabalho tive contato pela primeira vez com a esquerda cirandeira e achei que tinha achado meu lugar (mesmo sendo a única representante da minha raça nela). Demorou bastante para entender que aquelas pessoas queriam falar por mim ao invés de me dar voz. Tenho uma sensação forte até hoje de que minha chefe era racista daquelas que dizem “tenho até amigos negros” e que tentou me usar de “cota” para disfarçar seu racismo.
Manu: Hoje temos avanços na luta pela igualdade racial. Como você enxerga esses avanços? Na prática está acontecendo?
Bel: Tenho a impressão que os avanços são mais dentro da comunidade negra do que no mundo em si. Mas acredito que seja um baita avanço. O recente processo de assumir o cabelo natural no meio dos negros para mim foi a coisa mais linda de ser ver. Depois as redes sociais deram voz às personalidades negras e fizeram e fazem bastante barulho. Eu vejo uma reflexão sobre o racismo, sobre o que sofríamos e o que sofremos muito mais forte hoje entre os jovens. Mais revolta, mais denúncia, mais conscientização. Há quatro anos SE eu seguia algum negro em rede social, eram poucos, e hoje eu busco que sejam a maioria. Compro livros sobre identidade, história africana, filmes com personagens negros, brinquedos para minha filha, meu sobrinho e as crianças à minha volta e vejo muitas pessoas fazendo o mesmo. É reconfortante.
Manu: Eu sei como você escreve bem e quero que deixe seus dedos colocarem pra fora tudo o que está preso e gostaria de te convidar a escrever mais para nós!
Por Isabel Andrade
“Quando a gente fala de pretos e pretas e negros e negras e raça negra e todas as variantes a primeira coisa que a gente pensa é em que? Escravidão.
Sim. Mais certo que dois e dois são quatro é a associação de preto com escravo.
Mas por quê? Por quê esse é o início da sua vida meu bem. Por que infelizmente seu povo nasceu para isso. Por que seu povo era tão selvagem que se deixou escravizar por homens maus no passado.
Não, amor. A gente pensa isso porque foi isso que nos foi ensinado. Para nós negros e para os brancos também. No Brasil a história do negro é que ele foi tirado da África (do continente, porque não interessa dizer que pessoas foram roubadas de milhares de regiões, quais eram essas regiões, que dezenas de povos e dinastias foram desmanteladas para o trabalho forçado) foi trazido para o Brasil passivamente, foi escravo por 400 anos e em 1888 tiveram a benção de ser libertos por uma princesa portuguesa e desde então tem a mesma vida que todo mundo e são tratados de igual para igual. E se a vida é “um pouco” mais dura para eles é porque não se esforçaram o suficiente para alcançar o mesmo que o coleguinha branco.
Nunca nos foi ensinado de onde vieram nosso ancestrais, qual o país, qual o povo, qual o sistema político que tinham, qual idioma falavam, qual cultura tinha, quais suas crenças, o que deixaram para trás, quem eram, quais eram seus nomes. O primeiro contato que um criança branca e uma criança negra tem com a história do negro é com ele escravo.
Isso se reproduz pela vida quando não se vê negros na televisão, nem nos desenhos, nem nos filmes, nem no jornal, nem na novela. Na verdade até vemos em papéis marcados de “amigo” do protagonista, empregado do protagonista, bandido. Era complicado ver um negro dono de empresa, rico, fazendo viagens internacionais, morando na beira da praia. Nem apresentando programas ou jornais. Só nas manchetes. Da sessão policial. Ou esportiva. Brinquedo também não tinha. Boneca preta era associada ao vodu ou macumba. Histórias infantis com personagens negros voltavam sempre para o tema da escravidão.
Foram mais de três séculos de escravidão. 400 anos e lá vai bolinha de encarceramento contra 132 anos de “liberdade”. Repare que não temos nem metade de tempo “livre” do que tivemos de tempo de escravo. Negros de 30 anos, no Brasil, só tiveram 2 gerações da família “livres”. Os bisavós dessas pessoas foram escravos (nasceram livres, pela lei do ventre livre, mas me diz o que um bebê livre faz se seus pais são escravos? Então, né!).
Quando a gente pega a coisa assim na matemática, que é exata e não deixa dúvidas e nem margem para “mas”, é que a gente vê o tamanho da discrepância do que a história nos diz e do que é real.
Eu gosto muito de comparações. E eu tenho uma bem polêmica.
Holocausto
4 anos de extermínio de 9 milhões de pessoas.
Já imaginaram 400 anos?
Ah! Mas não foi extermínio!
O que os diferencia?Só pensa.
Hoje somos 56% da população brasileira, mais ainda assim somos a maior quantidade nas favelas, nos presídios, nas vítimas de violência e minorias em altos cargos, na política e até no clero.
Por quê? Só pensa.
Um provérbio africano diz: até que os leões inventem suas próprias histórias, os caçadores sempre serão os heróis da narrativa de caça. O exemplo disso é a balela que se permeou por anos e anos e anos de que o preto era preguiçoso, se deixou escravizar e hoje continua nas camadas mais baixa por causa da herança da preguiça de seus ancestrais. Mas hoje, meu parceiro, 2020 (apesar de tudo) ninguém mais engole. Continuamos sim entre as minorias, mas não por herança ancestral e sim maldição do processo histórico que começa na escravidão e passa pela “libertação” sem que esse povo tenha sido inserido na sociedade de forma igualitária. Ficamos à margem. Somos a margem. Ainda que maioria.
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